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Apontamentos sobre Entre o Muro e o Meio-Fio 

Ivair Reinaldim 

 

Prólogo: Mais que mediar a aproximação do espectador com os trabalhos e os processos da artista, o presente texto procura aprofundar teoricamente certos aspectos nem sempre explícitos naquilo que se vê, logo num primeiro contato com a exposição. Pretende, desse modo, averiguar outras camadas de sentido existentes nos trabalhos, dialogando com a teoria da arte recente, com o imaginário noturno de Goeldi e com a dupla polaridade instalação/imersão nos espaços virtuais. 

1. Em 1979, Rosalind Krauss escreveu um ensaio seminal para a teoria da arte, intitulado A escultura no campo ampliado. Nele, comenta que o amplo uso do termo “escultura” nos anos 1960 e 1970 contribuiu para esgarçar seu sentido: naquele contexto, trabalhos muito distantes de uma noção consensual do que viria a ser escultura passaram a ser incluídos nessa categoria artística. Como decorrência, Krauss deduziu que, no que hoje entendemos como arte contemporânea, “a práxis não é mais definida em relação a um determinado meio de expressão – escultura – mas sim em relação a operações lógicas dentro de um conjunto de termos culturais para o qual vários meios – fotografia, livros, linhas na parede, etc. – possam ser usados”. Para os artistas, desse modo, deixar de reportar-se a um meio específico, com seus materiais e procedimentos, passa a representar o desejo de assumir uma atitude mais transdisciplinar e muitas vezes de caráter experimental. Parafraseando o título do ensaio de Krauss, a série de trabalhos pertencentes a Entre o Muro e o Meio-Fio poderia ser entendida então como exemplo de “gravura no campo ampliado”, uma vez que guarda uma relação intrínseca, seja na aparência seja nos procedimentos, com algumas linguagens da chamada gravura artística. Se Sonia Távora fala de um processo em que pintura e gravura se misturam (o que já evidencia certo hibridismo), é preciso ressaltar, no entanto, que as operações processuais nesses trabalhos têm menos a ver com pintura, em essência, aproximando-se mais da xilogravura – técnica em que a imagem é gravada numa superfície de madeira, que será então entintada e depois impressa e reproduzida sobre o papel (numa posição espelhada). Mas aqui a própria matriz já é a imagem e não há nenhum interesse em reproduzir aquilo que foi gravado. Sem ser uma coisa ou outra, enfim, sem apresentar um rigor nos processos próprios de cada técnica (o que muitas vezes é empregado e defendido como algo essencial por muitos praticantes da gravura, ainda imbuídos de virtuosismo ou sentimento de pureza), sem utilizar o suporte que lhe é padrão (uma vez que a artista recorre ao papelão corrugado, de baixo valor, com função meramente utilitária e natureza descartável), Sonia Távora subverte a tradição da gravura, criando seu próprio modo de trabalhar e sua própria linguagem, ambos incorporados ao campo poético e conceitual do trabalho. 

2. O corte atravessa a matéria, rompe a superfície negra, faz a luz aflorar. Todo corte no material é em essência um rasgo de luz, que não só percorre uma superfície, mas penetra um espaço em profundidade. Essa “luz” deixa entrever certos detalhes das coisas e do local que as mesmas ocupam. Elas definem – por contraste – uma atmosfera. Mestre em como atingir essa profundidade estética, Oswaldo Goeldi contribuiu enormemente para a constituição de um imaginário na xilogravura artística produzida no Brasil. Em 1924, o artista diria: “cada traço é um pedaço de nervo com a veemência de um coração bárbaro.” Mais que simples corte, índice do desenho sobre a matriz, as linhas dão às imagens de Goeldi uma atmosfera enérgica, intempestiva, soturna: imagens que representam cidades adormecidas, seus casarões, postes e calçadas, algumas figuras solitárias vagando por esse espaço ermo, inacabado, instável. Não era um mundo de certezas, mas um ambiente deslocado, tão típico de um temperamento expressionista.

 

 

 

 

 

 

 

O crítico Paulo Venancio Filho afirma: “Os interstícios por onde Goeldi penetrava, a paisagem que descobria, revelavam uma atmosfera viva e inquietante, onde não se escolhem os caminhos que se deseja seguir e seguem-se aqueles que não se pode evitar. A desorientação exterior é sintoma também de uma desorientação interior, o tempo abandona o vagar e divagar paralelo à natureza sem encontrar um substantivo para a vida social urbana.” Os espaços de Entre o Muro e o Meio-Fio lembram essas visões noturnas das paisagens urbanas de Goeldi. Mas o que nele é um corte expressionista, em uma escala doméstica (as pequenas dimensões, próprias da tradição da gravura e do circuito modernista ‘ateliê-galeria-residência’), aqui é corte projetivo, em escala humana (transforma-se em instalação, em trabalho que incorpora as paredes e a volumetria da galeria). A formação em arquitetura e urbanismo de Sonia Távora não nos deixa cometer equívocos: há um traço que constrói, que equilibra as áreas de luz e escuridão, que organiza esses elementos urbanos, de modo diferente do artista expressionista. Lá há ainda alguma narrativa a ser imaginada, por meio desses indivíduos solitários que vagueiam pela superfície negra da impressão sobre papel; aqui é um espaço instalado, ausente de indícios humanos, mas completamente disponível para ser ocupado (imaginariamente) pelo espectador, que assim constrói sua própria história. 

 

3. Virtualidade foi um aspecto explorado exaustivamente e de diferentes modos no decorrer da história da arte. Para Oliver Grau, a ilusão funciona de dois modos: “primeiro, existe a função clássica da ilusão, que é o lúdico e a submissão consciente à aparência, isto é, o prazer estético da ilusão. Segundo, a inibição temporária – pela intensificação dos efeitos da imagem sugestiva e pela aparência – da percepção de diferença entre realidade e espaço imagético.” Nesse processo, o poder sugestivo das imagens consegue, por algum tempo, produzir seus efeitos: podemos pensar nas pinturas rupestres na caverna de Lascaux, nas paredes dos templos e câmaras mortuárias dos egípcios ou das residências de Pompéia, na pintura em perspectiva do Renascimento, nos tetos pintados das igrejas barrocas ou ainda nos panoramas do século XIX. Pensar em virtualidade hoje, entretanto, é considerar uma série de experiências com espaços imersivos, sobretudo a partir de tecnologias que em muito contrastam com os meios mais tradicionais da arte. Esse não é o caso de Entre o Muro e o Meio-Fio. Ao instalar os grandes painéis de papelão corrugado nas paredes da galeria, Sonia Távora, de certo modo, recupera esses diferentes modos como a pintura mural ocupou e transformou os espaços da arquitetura. Aqui, somos ao mesmo tempo visitantes da galeria, espectadores dos painéis de papelão e andarilhos virtuais nos espaços sugeridos pela artista, imagens que mais insinuam ambientes urbanos, fragmentos de lugares, do que definem um local reconhecível. Contudo, se há uma entrega da percepção à ilusão que tanto a aparência quanto a configuração dos trabalhos no espaço pode provocar, ao expor no centro da sala os “restos” dos seus procedimentos, os fragmentos de papelão retirados da superfície durante o processo de construção da imagem, a artista de certo modo “quebra a ilusão”, fazendo com que a virtualidade do espaço representado apresente-se de fato como ilusão – e não como possível realidade. Desse modo, o espectador é o tempo todo confrontado com uma dupla impossibilidade: primeiro, abarcar visualmente toda a instalação num único relance (isso só pode ser feito através da apreensão temporal dos fragmentos); segundo, elaborar uma completa fusão da imagem representada com o ambiente que a abriga (galeria), uma vez que o conflito entre imagem, suporte material e espaço real contribuiu para uma permanente polarização dessas instâncias. 

 

 

 

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