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Entre esquinas: a resistência dos restos

“E porque o mundo, apesar de redondo, tem muitas esquinas”.

Caio Fernando Abreu

“Enquanto o colonialismo edificou a cruz como sua égide, sobrevivemos vadiando nos vazios deixados, ocupando e inventando as esquinas da modernidade ocidental, praticando as encruzilhadas como um campo de possibilidades”.

Luiz Rufino

As esquinas são pontos de interseção — tanto no sentido físico quanto simbólico. Elas marcam a convergência de caminhos e a possibilidade de encontrosinesperados, funcionando como espaços de sociabilidade e troca, de confronto e resistência. Por vezes, as esquinas encontram-se e formam encruzilhadas, sítios que podem reunir fortes cargas espirituais carregados de potência, onde todas as opções se cruzam, dialogam, entrelaçam e se influenciam mutuamente. É neste local em que se pode sentir a pulsação de uma cidade que Sonia Távora debruça-se em sua mais recente investigação. Formada em arquitetura, a artista tem especial atenção para o aspectohumano dos edifícios e dos espaços urbanos e seu impacto na subjetividade contemporânea. 

Desde 2018, Sonia Távora tem acompanhado as mudanças que redesenham a capital portuguesa, mas que ecoam em diversas metrópoles pelo mundo. Edifícios que por gerações abrigaram famílias tornam-se ativos especulativos nos portfólios de fundos de investimento; lojas centenárias cedem espaço a redes globais de comércio genérico; bairros inteiros são convertidos em vitrines para o turismo internacional. A sensação é de que as cidades deixaram de ser espaços de convivência e se tornaram mercadorias em circulação, disputadas por investidores globais que veem no mercado imobiliário uma das últimas fronteiras de valorização do capital. Nas esquinas destas cidades, cada vez mais esbarram-se turistas e moradores temporários. 

É nesse contexto global que surge Entre esquinas – a resistência dos restos, projeto em que Sonia Távora representa este novo tipo de cidade, fragmentada, frágil e estéril. Ela utiliza como matéria principal painéis de papel cartão, material que tradicionalmente embala mercadorias e que, aqui, se torna símbolo da cidade-mercadoria. Ao ressignificar a técnica da xilogravura, usada em Portugal desde a Idade Média e levada ao Brasil pelos colonizadores, a artista substitui a madeira pelo papelão, evocando a precariedade do presente. Suas monotipias em papel arroz funcionam como registos frágeis, oníricos, vestígios de um espaço urbano em mutação. Sua instalação nos lembra que, enquanto algumas cidades se tornam inacessíveis para seus próprios habitantes, outras são reduzidas a cenários vazios, onde o flâneur do século XIX daria lugar ao turista-consumidor do século XXI. Se, no passado, flanar era um ato de contemplação e de luta contra a velocidade da modernidade, hoje esse direito é cada vez mais restrito. Ao nomear de resistência dos restos a esta etapa de sua pesquisa, a artista enfatiza a nobreza dos resquícios e dos pequenos atos de persistência, em que a arte pode ser uma arma contra o apagamento, o esquecimento e a solidão. 

 

Cristiana Tejo 

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